De Invisíveis a Inesquecíveis: Como a História da Infância Explica a Educação que Precisamos Abandonar.
Na Idade Média, a taxa de mortalidade infantil era devastadora: de cada mil crianças nascidas, cerca de quatrocentas morriam antes de completar um ano de vida. Era um massacre silencioso, naturalizado, aceito como parte inevitável da existência humana.
Havia uma consciência coletiva de que a criança podia estar presente um dia e desaparecer no dia seguinte. Epidemias, doenças, desnutrição, falta de cuidados médicos — tudo conspirava contra a sobrevivência infantil. E como a sociedade lidava com essa realidade brutal? Desenvolvendo o que hoje nos parece impensável: um mecanismo de autoproteção emocional através do desapego.
Se você sabe que metade das crianças ao seu redor não chegará aos cinco anos, como se permite amá-las profundamente? A resposta histórica foi cruel: não se permitia. A criança pequena valia muito pouco na mentalidade ocidental até o final do século XIX. Havia rituais de luto, sim, mas também havia uma aceitação fatalista, uma frieza que hoje nos choca.
Adultos em Miniatura: Quando a Infância Não Existia
Durante séculos — especialmente do século XV ao XVIII — a infância, como a concebemos hoje, simplesmente não existia enquanto conceito social. As crianças eram tratadas como "adultos em miniatura", e a sociedade medieval não estabelecia distinções significativas no tratamento delas com base no desenvolvimento humano.
A criança usava as mesmas roupas que os adultos, trabalhava nos mesmos locais, era tratada da mesma forma. Aos sete anos — idade que a Igreja Católica definia como momento do "discernimento entre o certo e o errado" — a criança deixava de ser criança. Passava a trabalhar integralmente, a participar de todas as atividades adultas, incluindo aquelas que hoje consideraríamos absolutamente inadequadas.
Não havia espaços privativos para as crianças, nem limites claros para o que os adultos podiam expor. Tudo era permitido diante de seus olhos — incluindo sexo, necessidades fisiológicas, jogos de azar, consumo de álcool, brigas, guerras. A infância não era protegida porque não era reconhecida.
A Revolução Industrial: Quando as Crianças se Tornaram Mercadoria
Se você acha que a situação melhorou com o tempo, prepare-se para uma revelação perturbadora: em muitos aspectos, a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX piorou drasticamente a vida das crianças.
Crianças a partir dos cinco anos de idade trabalhavam em turnos de 12 horas diárias, seis dias por semana, em fábricas, minas de carvão e campos agrícolas. Elas eram especialmente valorizadas como mão de obra porque seus corpos pequenos cabiam em espaços estreitos das máquinas e túneis de minas onde adultos não conseguiam entrar.
Uma criança trabalhadora era cerca de 80% mais barata que um homem e 50% mais barata que uma mulher. Essa "vantagem econômica" transformou a infância de milhões em um pesadelo de exploração.
No Brasil, a realidade não foi diferente. Em 1890, 15% da mão de obra dos estabelecimentos industriais de São Paulo eram crianças e adolescentes; em 1919, esse número subiu para 37% no setor têxtil, chegando a 40% na capital paulista. Crianças de seis, sete anos eram acordadas às cinco da manhã para jornadas exaustivas em fábricas barulhentas, úmidas, perigosas.
Quando ficavam cansadas e não conseguiam manter a velocidade exigida pelas máquinas, os supervisores as chicoteavam. Eram castigadas por atrasos, por conversarem entre si, por qualquer "desobediência". A violência física não era exceção — era o método padrão de controle.
O Legado Tóxico: Criança como Ameaça
Aqui chegamos ao ponto crucial: por que tantas gerações aprenderam a ver a criança como uma ameaça, um ser que precisa ser domado antes que domine?
Quando você vive em uma sociedade onde crianças são tratadas como pequenos trabalhadores imperfeitos — seres que "não sabem fazer as coisas direito", que "erram muito", que precisam de constante correção violenta para serem produtivos — desenvolve-se uma mentalidade profundamente distorcida.
A criança passa a ser vista como:
- Um ser naturalmente preguiçoso (afinal, resiste ao trabalho pesado)
- Desobediente por natureza (porque não consegue manter o ritmo adulto)
- Manipulador (porque busca escapar da dor e da exploração)
- Uma ameaça potencial à autoridade ("se eu não colocar no lugar, ela vai me desrespeitar")
Essa lógica se enraizou profundamente no imaginário coletivo. E foi agravada por doutrinas religiosas que pregavam a criança como pecadora de nascença, naturalmente inclinada ao mal, necessitando de "correção" severa para não se perder.
A partir dos sete anos, as crianças eram inseridas no mundo adulto, compartilhando dos mesmos afazeres, trajes e responsabilidades. E se não cumprissem à altura? A punição era a resposta. O medo, a ferramenta. A obediência cega, o objetivo.
Gerações inteiras cresceram acreditando que se não controlássemos as crianças com mão de ferro, elas nos dominariam. Que se demos liberdade, perderíamos nossa posição de autoridade. Que demonstrar afeto sem exigir submissão total criaria pequenos tiranos.
A Virada: Quando Começamos a Enxergar a Criança
Foi apenas a partir do final do século XIX e início do século XX que movimentos sociais, científicos e humanitários começaram a questionar essa brutalidade sistemática. No final do século XIX, no Brasil, de cada mil crianças nascidas vivas, 460 poderiam morrer antes dos sete anos. A mortalidade infantil se tornou uma preocupação médica e social.
Leis trabalhistas começaram a limitar o uso de crianças nas fábricas. A educação formal se expandiu. A pediatria surgiu como especialidade médica. E, finalmente, a psicologia e a neurociência começaram a revelar uma verdade revolucionária: crianças não são adultos defeituosos. São seres em desenvolvimento, com necessidades específicas, cérebros imaturos que precisam de tempo, paciência e orientação — não de medo e violência.
Mas o legado dos séculos anteriores permanece. Está nas frases que ouvimos diariamente. Está na crença de que limite só funciona se vier acompanhado de punição. Está no medo de que, se não formos duros, perderemos o controle.
Nossos pais e avós foram criados dentro desse paradigma. E não os culpo. Faziam o melhor que sabiam com as ferramentas que tinham. Mas hoje, a neurociência nos presenteia com um tesouro de conhecimento: a compreensão profunda de como o cérebro infantil realmente funciona. E o que descobrimos? Que educar pelo medo não apenas falha — prejudica.
Nós, adultos de hoje, carregamos feridas de uma educação pautada no medo, na obediência cega, no "porque eu disse e pronto". Muitos de nós crescemos acreditando que precisávamos ser perfeitos para merecer amor. Que nossas emoções eram inconvenientes. Que questionar era desrespeito.
É hora de romper esse ciclo. Não por culpa, mas por consciência. Nossos filhos merecem crescer sabendo que são amados incondicionalmente, que seus sentimentos são válidos, que errar faz parte do aprender. Eles merecem desenvolver a habilidade de se regular emocionalmente em vez de apenas obedecer por medo.
Fernanda Figueiras
Psicóloga Infantil
Especialista em Orientação Parental
📱 Instagram: @fernanda_figueiras_psicóloga_
Comentários
Postar um comentário